O burguês acordara
com uma estranha sensação. Mesmo com a decisão de dispensar a “impertinente da
Maria” logo que estivesse em seu trabalho (preferia evitar o contato direto e
ligaria de seu escritório), ele ainda não estava seguro (aliás, segurança era
uma ideia que o burguês associava a consumo exacerbado e a equipe de
monitoramento via satélite). Levantou-se, barbeou-se e foi para a cozinha.
Alice degustava o café da manhã ferozmente, fato que lhe chamou a atenção:
- Nossa amoreco, que
fome é essa?
- Oi meu quindinzinho
(o burguês não percebia que esse apelido não era assim tão carinhoso), dormiu
bem? Eu estou com uma alegria que até meu apetite voltou!
- Mesmo? E o que
aconteceu? (Ele começara a desconfiar de algo).
- Nada minha diet coke
(outro apelido “carinhoso”), estou empolgada com a nova coleção de sapatos
italianos que chegaram no shopping! Aliás, Depois do almoço vou até lá para
conferir essa maravilha!
O burguês não
respondeu, pois precisava pensar sobre o aumento de “visitas” semanais ao
shopping realizadas por Alice. Sentou-se, despejou seu cereal importado na
vasilha de porcelana “fina e elegante” que comprara em uma loja
“descoladérrima”, como dizia seu colega de trabalho, e iniciou seu desjejum.
Tentou não se importar com a presença da Maria, que entrava e saia da cozinha
em suas tarefas matinais, fingindo ler seu jornal (um factoide crasso e
direitoso onde burgueses alienados mantinham o discurso dominante funcionando).
Alice levantou-se da mesa, desejou-lhe
um bom dia de trabalho (“Porque alguém precisa trabalhar nesta casa, não é
mesmo?”) e desapareceu pelo apartamento com uma enorme varanda e espaço
gourmet. Ao dobrar o factoide impresso o burguês se deparou com uma reportagem
sobre os protestos contra o governo federal. Começou a ler os escritos sem
perceber (logicamente) que aquelas palavras não eram notícia, mas verborragias
de ódio que tentavam incitar os leitores a se posicionarem tal e qual o
tabloide. Em alguns minutos decidiu que participaria dos protestos: “É isso aí,
fora Dilma! Todos os problemas do Brasil são culpa dela, aquela terrorista!”.
No fim de semana
vestiu sua camisa da seleção brasileira (original da Nike, pois coisa de camelô
é muito brega) e junto com seus dois filhos, que também usavam a referida
camisa, foi para a Paulista ser feliz. Sua esposa não quis ir. Disse-lhe que
estava preocupada com sua irmã e que usaria a tarde para visitá-la. Desconfiado,
o burguês fingiu concordar. Resolveria esta questão de um modo mais agudo
(decidira que contrataria um detetive particular). Foi para a avenida de metrô,
afinal era bom estar perto do povo. Lá chegando, encontrou vários dos seus
colegas e chefias, parecia mesmo que todos os seus amigos burgueses estavam lá:
“Nossa, isso sim é democracia! Só gente de bem, cheirosa e bem vestida”. Quando
ele e seus filhos estavam no meio da avenida, um cartaz lhe chamou a atenção.
Nele havia os dizeres “A favor do feminicídio”. O burguês concordou, pois
sentia raiva só de pensar que sua Alice poderia o trair: “Ah se ela o fizer,
mando matá-la!” No quarteirão seguinte outro cartaz avivou seus pensamentos
(que depois de 40 minutos de caminhada já pensavam em descanso e comida pronta):
“Expulsem Paulo Freire das escolas”. Intrigado, foi até o sujeito que o
empunhava e perguntou-lhe:
- Quem foi Paulo
Freire?
- Você não sabe? Foi
um comunista terrorista que implantou o socialismo na educação brasileira! Por
causa desse maldito nossa educação está assim, sem regras, sem moral. Queremos
a volta da palmatória e o fim das matérias de filosofia e sociologia, que só
fazem nossos filhos pensarem como os cubanos! Morte aos professores dialógicos!
O burguês pensou um
pouco e concordou com sujeito. Afinal, esse país estava assim por conta do excesso
de liberdade que esses “vermelhos” reivindicam. Passados dez minutos seu estômago reclamava.
Reuniu seus filhos e se dirigiu ao Shopping mais próximo. Lá, poderia
sentar e comer um “Mac lanche feliz” enquanto pensava em como essa manifestação
estava “mudando” o país. Xingou um pouco mais a figura da presidenta, entrou no
Shopping e sentiu-se verdadeiramente em casa: “Ah, como é bom lutar por nossos
valores, por nosso país”.